“Ler e escrever sobre literatura moldaram minha existência”

Por Larissa Martins/AES

 

O mundo da literatura encanta em qualquer fase da vida: quando somos crianças, nos apaixonamos pelos contos, na juventude, pelas histórias de romance, e na vida adulta, por histórias profundas. Apaixonar-se pela leitura acontece da forma mais incrível que podemos imaginar: é quando conseguimos viajar entre universos em um simples virar de páginas.

É o que nos conta Susana Ventura. Nascida em 1968, na cidade de Rio Claro (São Paulo), ela é escritora e doutora em Letras pela Universidade de São Paulo (USP), na área de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, e atualmente doutoranda em Estética e História da Arte pela mesma instituição.

Apaixonada pelos livros desde pequena, e incentivada a ler nessa mesma fase, ela empreende importante pesquisa sobre a língua portuguesa e sobre contos de fadas de autoria feminina – inclusive, os reescreve sob a ótica de personagens femininas, feministas e empoderadas -, com livros publicados e premiados sobre ambos os assuntos.

Na entrevista abaixo, ela nos conta sobre seus sonhos, seu processo de escrita, e sobre como a literatura tem grande impacto em sua vida.

 

Fale um pouquinho da sua história com a literatura, como tudo aconteceu? 

A minha história com a literatura começa com os livros mesmo, com livros para criança (um acervo pequeno), que meus pais e meus tios maternos se preocupavam em me dar. Alguns deles tinham discos integrados, da coleção “Disquinho” sobretudo, mas também outros. Eu pedia muito para os adultos lerem os livros que vinham sem discos. Tive um da lenda da Vitória Régia que me emocionava muito e um grande volume com poemas traduzidos da coleção “O mundo da criança” – eram mergulhos em palavras e imagens e hoje, quando vejo fotografias na internet dos livros ou alguém leva nas aulas (quando são presenciais), tenho a mesma sensação daqueles anos. Também adorava os gibis, meu tio fazia coleção deles e eu pedia muito para lerem para mim. Além disso, minha mãe contava histórias na hora de dormir e eu adorava aquele momento. Eram histórias inventadas com personagens como um passarinho que pousava na nossa janela e se chamava Migalhinha. Este tipo de história eu queria que continuasse, pedia continuação constantemente (o tal Migalhinha casou, teve filhos, os filhos fizeram mil e uma coisas – a história não podia acabar e meus personagens favoritos deveriam viver sempre novidades).

Como foi seu primeiro processo de reescrita dos contos de fadas? 

Comecei a escrever a partir de uma encomenda de editora e me enrolei muito. Tenho um grande sentimento de reverência pela obra alheia e também pela perfeição, muitas vezes conseguida pelas formas da cultura popular. Então o começo foi difícil, pedregoso. Para minha sorte eu já era amiga de uma das grandes autoras brasileiras para crianças e jovens, a santista Helena Gomes, então telefonava e me aconselhava. Lembro deste primeiro livro que achava que não conseguiria adaptar bem uma história que para mim era muito pesada porque falava da inveja que duas irmãs sentem da terceira delas, que consideram mais sortuda. Elas mentem e a mentira leva a protagonista a um castigo horrível: ser enterrada da cintura para baixo num pátio para ser agredida verbalmente por muito tempo. Aquilo me afligia muito e, na continuação, havia em algumas versões um papagaio e em outras a atuação de uma figura mística para o encaminhamento da redenção da protagonista. Era um domingo e eu estava sozinha em casa. Telefonei para Helena dizendo: “Não consigo, vou ter que trocar de história!”. Ela riu de mim e, em dois minutos, me ofereceu alternativas várias, dizendo que as aves que dizem as verdades são o equivalente da ajuda divina, tal qual a figura mística, que pode ser uma fada madrinha ou alguma divindade. Era caso de comparar as versões e ver qual me agradava mais. Com o passar do tempo tudo foi ficando muito mais simples. Hoje, o trabalho de recontar é feito a partir de versões que leio, mas depois de escolher quais as melhores para o que eu quero dizer, parece que já escuto uma voz ao ir escrevendo. É diferente quando se trata de tradução, um trabalho que também faço: ali há a preocupação de encontrar as melhores palavras para dizer em português o que a autora original (em geral trabalho com mulheres escritoras) quis dizer, mantendo-me mais próxima de seu estilo se ela escrevesse em português.

Como você, autora, se sente sobre cada vez mais pessoas se apaixonando pela leitura durante a pandemia? 

Eu fico feliz e esperançosa. Percebi que, na pandemia, a parcela de população que teve acesso a conteúdo escrito, leu mais. Os encontros virtuais que tenho com leitores que vêm do sistema escolar mostram um aprofundamento de questões que eu não via antes. Troquei impressões com alguns mediadores de leitura e colegas a respeito. Mas minha grande preocupação é quem esteve afastado completamente da leitura e escrita porque a escola, especialmente, não chegou lá. Não podemos nos enganar: num país como o nosso, as relações com a leitura e o universo dos livros está sendo construída e precisamos muito da escola e das bibliotecas escolares e públicas nisso. Fortalecer a escola pública, a biblioteca escolar e as bibliotecas públicas, será essencial para a retomada de quem não teve chance de estudar e ter acesso à leitura, especialmente a leitura literária, durante a Pandemia. Houve projetos que gravavam histórias para as crianças, como o Cervantes Solidário (leia mais abaixo), nesse projeto, por exemplo, os áudios eram distribuídos para as famílias por WhatsApp, e há relatos de que, no primeiro momento de isolamento social a audição em família era o único momento do dia em que as pessoas descansavam e as crianças se acalmavam. A literatura digamos “vocalizada” cumpria um papel social importante, naquele primeiro “susto” dos meses iniciais.

Qual a importância da literatura na sua vida, o impacto que ela teve sobre a sua personalidade?

Na minha existência é um impacto que eu diria total. Ler e escrever, mas especialmente ler literatura e escrever literatura e sobre literatura e leitura, moldaram a minha existência, conferindo a ela um significado que transcende o meu tempo de vida sobre a terra.

Transformar personagens dos contos de fadas em mulheres empoderadas é algo muito incrível, e de fato necessário! Qual foi a sua maior inspiração para começar a reescrever e trazer essa atualidade para histórias conhecidas? 

Meu trabalho maior não é modificar contos muito lidos e publicados e sim buscar contos esquecidos em que o protagonismo feminino era muito mais interessante. Investigar primeiro onde estavam esses conteúdos esquecidos e entender o motivo de seu apagamento pela História da Literatura. Compreendido isto fui trazendo esse conteúdo de volta, traduzindo-o, às vezes recontando, às vezes adaptando. Por exemplo, eu não reescrevo Rapunzel, eu traduzo e às vezes reescrevo versões esquecidas do conto do mesmo tipo “donzela presa na torre” e busco e encontro contos com rapazes presos em torres e que podem e são salvos por moças. Eu poderia, claro, só reescrever as histórias mais conhecidas dando a elas uma nova roupagem. Mas a minha pergunta era: “será que alguém já não pensou em fazer isso há séculos atrás?” e: SIM, a minha pesquisa mostrou que sim, muitas pessoas contaram, escreveram e publicaram histórias com mulheres sensacionalmente maravilhosas e valentes. São essas que me interessa trazer de volta, publicar de novo e mostrar para as pessoas o que aconteceu para que não tivessem sobrevivido até nossos dias.

“O Caderno da Avó Clara” é uma de suas obras mais famosas, e a história é realmente interessante. Como foi esse processo de escrita, seus pensamentos, suas ideias? 

Foi um processo muito especial porque partiu de uma Bolsa de Criação ProAC que recebi para criar um texto inédito para crianças ou jovens. Eu queria juntar algumas coisas: o amor que sentia pelo Museu Casa de Portinari, a admiração pela obra de Portinari, o carinho pelas pessoas amigas que deixei em Batatais, Brodowski e Ribeirão Preto num período que trabalhei lá com uma história “em moldura”, que é o modelo das 1001 noites: alguém que conta uma história principal, que é interrompida por outras histórias acessórias. Foi muito intenso e foram dez meses de pesquisa, escrita, reescrita, tradução (o conto Sorfarina, de Laura Gonzenbach é parte da minha pesquisa dos contos de fadas) até chegar ao texto final. Ele também não seria possível sem uma conversa iluminadora com Helena Gomes, porque eu tinha dúvidas se o formato ia funcionar – a avó do livro nunca aparece pois já morreu quando a narrativa se inicia. Como sempre, Helena me tranquilizou, me deu coragem e conselhos para fechar o texto – eu sentia que estava “encalhado” e após a nossa conversa, em menos de dez dias tive o texto pronto, o que está no livro que pode ser lido hoje. Na sequência, quando o original, entregue para cumprir o requisito da Bolsa de Criação, foi se tornar um livro, começou o diálogo com a ilustradora Carla Irusta, que abraçou o projeto e com quem conversei muito, para quem mandei centenas de fotos de celular das minhas referências visuais e foi extremamente acolhedora, me incluindo no processo artístico dela. Ainda houve três pessoas essenciais: a editora, Gabriella Plantulli,que torceu muito para o original ser aceito pela SESI  e  se dedicou muito ao livro e a designer gráfica, Carla Arbex, que decidiu formato, letra, o modo como o caderno da avó entraria na narrativa e como ele seria representado graficamente. Por fim, a professora Maria Zilda da Cunha, da USP, a quem convidei para fazer a apresentação com o livro praticamente pronto, deu uma ideia genial sobre o conto “diferente” que faria parte do caderno, o conto da mãe da protagonista, que seria copiado por ela no antigo caderno de contos da avó Clara: a letra de Mariana, a menina protagonista, tinha que aparecer ali. Voltamos para as mãos de Carla Arbex, que concordou muito com isso, era uma necessidade gráfica real que ninguém até então havia visto. Assim, quando “O caderno da avó Clara” chegou às livrarias, ele era amado por muita gente.

Você tem algum sonho que almeja muito? Seja na área profissional ou pessoal?

Tenho dezenas  de sonhos: voltar ao México e visitar com calma muitos lugares que ainda não visitei quando estive lá, ir novamente ao Japão onde tenho um trabalho começado na Biblioteca Infantil do Projeto Construir Artel, uma comunidade brasileira em Osaka, visitar dezenas de bibliotecas e livrarias que estão na minha lista, ver e rever museus que eu adoro, conversar e trabalhar ao lado de pessoas que admiro e que dão aulas em lugares espalhados por este mundo, conhecer a  Amazônia, conhecer o Parque Nacional da Serra da Capivara, escrever muito, publicar livros bons, fazer caminhadas em lugares lindos…

*Links dos áudios do projeto “Cervantes Solidário” que Susana comenta durante a entrevista, todos fornecidos pela escritora.

Áudio de conto gravado pela equipe do Cervantes Solidário:

 História 06 – O tambor africano – YouTube

Áudio de “Os três amigos músicos”:

História 01 – Os três amigos músicos – YouTube

Áudio de “A kantuta tricolor”

(224) História 09 – A Kantuta Tricolor – YouTube

Áudio de “A velhinha e a cobra”

História 25 – A velhinha e a cobra – YouTube